Amásia - nenhuma de nós
Às curvas de uma longa
estrada, eu ia até ele. O vento que soprava meus cabelos, típico do inverno
curitibano, me fazia lembrar do quanto eu sentia falta de suas carícias de terças-feiras
escapadas, após meio dia. Poderiam ter sido domingos de manhã com direito a
café na cama ou sextas à noite ao som de seu artista favorito, mas nossa
relação nunca nos permitiu estarmos livres a qualquer dia, a qualquer hora. Eu
já não sabia se o fato de ele me amar e não assumir me incomodava mais do que o
fato de eu estar, aos poucos, me conformando com isso. Mas essa aflição
renasceu noite passada, quando ele disse que teria que ir para casa assim que
recebeu um telefonema e saiu, apressado, preocupado, tropeçando nas roupas
dispersadas pelo quarto de hotel. Mais uma noite às espreitas de qualquer
suspeito. Afinal, vivíamos um romance escondido, como se estivéssemos às
sombras de uma árvore afastada no campus da faculdade, como se a juventude não
fosse efemeridade banal e tempo nenhum nos levasse a andar mais devagar. E,
depois de checar meu celular duas vezes por minuto, resolvi agir na manhã seguinte.
Eu liguei, esperei, roí minhas unhas, mordi a língua, até que ele atendeu e eu
perguntei: “O que houve?”. Um suspiro. Ela havia descoberto sobre nós dois.
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“Fomos flagrados.”, pensei. Éramos casal sem
teto, sem planos, sem acordos. Sabíamos, contudo, os riscos que corríamos e já
precisamos correr tanto para não sermos pegos. Não era justo com nenhuma de nós
duas. Sem dúvidas, ela merecia o que tinha: um homem ganancioso, infiel e
indigno de valores morais. Afinal, eles tinham tanto em comum. Já eu, a uma
certa altura da vida, percebia que não me valia muitos esforços um homem que me
via como segundo plano. Por mais que ele
sentisse o mesmo, eu jamais ouviria ele dizer que o fazia. Eu havia dito a ele
que partiria se ela soubesse ou desconfiasse. Ele consentiu com minhas meias
palavras hesitadas sem perguntas, apenas porque sabia das consequências se me
pedisse para ficar. Sorte a dele não ter precisado fazê-lo: “eu fico”, eu
disse, ao segundo telefonema, desta vez feito por ele. Eu pude sentir a falta
de domínio de palavras que ameaçavam, aos poucos, sair de sua boca. A voz
travada, a garganta seca, as mãos suadas, o olhar perdido e a respiração
ofegante. Eu imaginei tudo. A ligação contabilizava oito minutos de silêncio
quando ele resolveu molhar a garganta e encorajar sua voz, ainda fraca, a dizer
“tudo bem”. Tudo bem? Tudo bem. Esse discurso já havia resolvido muitas de
nossas discussões, mas não agora. “Um jantar”, eu propus, “nós três”, e a
ligação se encerrou sem alguma resposta dele. Eu me convencia, às vezes, a
acreditar que um dia ele driblaria os percalços em nosso trajeto com
bravura e sucesso, no entanto, esse papel sempre foi meu. Eu chegava a pensar
que nosso relacionamento era um tanto quanto unilateral. Sem ofensas, mas é que
“me ferem muito esses teus silêncios”, recitei Caio Fernando de Abreu tantas
vezes, para sua possível compreensão. Não que tenha funcionado, porque ele
dizia que poesia não o apetecia. Trufas de chocolate belga que eu havia trazido
de longe, nem pensar, porque ele dizia que tinha intolerância à lactose. Quem
dirá, então, uma viagem ao México, já que ele não falava espanhol e não gostava
de comida apimentada. Apesar de que as propostas de sua mulher eram muito bem
vindas – e investidas. Memórias descartáveis e pensamentos à parte, o celular
toca: era o número dele. Então, me pus a uma altivez sem relutâncias e lhe
disse que “não adianta me implorar para partir, eu vou ficar”. Um suspiro. Era
ela do outro lado da linha.
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“Por que eu sinto como se eu
tivesse feito besteira?”, perguntei, em tom alto e rude, para mim mesma.
Respirei, tomei um gole de água; “Você?”, lhe perguntei retoricamente, mas a
resposta que se seguiu foi rápida e absoluta: “Um jantar parece ótimo para
esclarecer as coisas. Às sete em minha casa. Acredito que já saiba o endereço.
Vamos ver quem ele escolhe: a mulher ou a amante.”. Desligou. Nunca havia ouvido
a voz dela antes. Soava inquieta e suave ao mesmo tempo, até que gostosa de
ouvir, como mar noturno. Dela não me restavam mágoas ou ciúmes quaisquer
naquele momento. Eu só precisava confiar nas sensações arrebatadoras e
agradáveis que eu causava nele, assim como ela confiava na sua postura e
condição social para fazê-lo ficar ao seu lado. Eu estava receosa, porém, pois
ela parecia saber como guiar e controlar a situação. No lugar dela, eu não sei
dizer se agiria da mesma forma. Já era tarde e eu tinha uma hora para me aprontar
e superar as expectativas dela. O relógio e o caminho até a casa - que por
vezes me acolheu - me manipulavam a favor da demora – eram minutos que não
zeravam e quilômetros que não acabavam. Às curvas de uma longa estrada, eu ia
até ele. O vento que soprava meus cabelos, típico do inverno curitibano, me
fazia lembrar do quanto eu sentia falta de suas carícias de terças-feiras
escapadas, após meio dia. Poderiam ter sido domingos de manhã com direito a
café na cama ou sextas a noite ao som de seu artista favorito, mas isso já não
importava mais. Sete horas em ponto, eu havia chegado. Os papéis se inverteram:
ela quem superou minhas expectativas. Uma mulher que, com certeza, deixava
muitos olhares a perseguir, com uma postura e beleza inegáveis, não minto. “Chegou,
até que enfim. Traga-nos o vinho.”, ela diz à empregada e, puxando
discretamente o braço dela, voltando sua atenção à mesa, pede “aquele que meu
marido preparou especialmente para mim.”, ainda sobre o vinho. Eu acredito que
eu tenha chegado atrasada. Já ele estava apenas com um copo de água em sua mão
– a que, por acaso, usava a aliança -, esquivando o olhar de mim. Estava
nervoso, como se demonstrava claramente, e decidido ao mesmo tempo. Parecia que
aquele jantar não demoraria muito para acabar. Talvez, nem precisaríamos de
sobremesa. Meus olhos, ao contrário, contornavam cada parte dele, cada traço e
trejeito. “Sente-se... Lúcia, uh?”, percebi um leve tom irônico na voz dela.
“Seu nome me lembra Lucíola, aquela obra magnífica de Alencar. Você deve saber,
já que gosta de poesia.” As palavras
fugiram da minha cabeça. Como foi que ela soube minha preferências literárias? Eu
não soube pensar em nada. Ele não era um suspeito sugestivo, uma vez que faria
de tudo para me preservar o máximo que pudesse; não havia um terceiro – ou
quarto? – envolvido na trama para denunciar meu perfil. A única possibilidade
que eu havia presumido, em aberto, foi a espionagem. Ela negou. “Não precisei
nem de um mero esforço”. Eu olhei para ele confusa, ele olhou para mim
esclarecido. Um suspiro. Ela já sabia há algum tempo sobre nós dois.
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“Onde foi que eu deslizei?”,
matutei, resgatando detalhes na memória para analisá-los. “Uma mensagem não
apagada, cheiro de perfume doce, igual a esse que você está usando, e uma placa
de carro”, explicou ela, com certa frieza no olhar. Eu me sentia como um réu a
ser julgado por um crime que, embora eu pensasse ter sido perfeito, deixou
rastros. Ao contrário do que eu pensei, ela não se rendeu às lágrimas e estava
disposta a ir até o fim para cantar vitória. Ter sido traída não parecia ter
deixado ela decepcionada. Ela cheirava a ambição e eu soube, naquele instante que, para ela, aquilo se tratava de um jogo e seu ego estava na disputa. Ele,
ao que parecia, queria acabar com a conversa sem nem mesmo ter acabado com sua água.
No fundo, eu sabia que ele viria a preferir sua mulher, pois, com ela, ele teria
filhos, uma reputação, uma base e era isso que importava. Comigo, seriam apenas
histórias mal contadas e mal vistas, às margens da decência, sem muita coisa
que valesse a pena carregar conosco. Mas eu poderia lhe garantir um amor sem
reticências ou vírgulas, por inteiro. Nos conhecemos anos antes dela aparecer.
Ele havia me dito, àquela época, que não a amava e que o seu interesse por ela era
estritamente financeiro. Não acredito que me apaixonei por um homem que
colocava o dinheiro acima de qualquer amor. Um silêncio se estabeleceu naquela
mesa quase vazia de expressões. Todos estávamos sérios, desamparados. “Há quanto
tempo?”, perguntei a ela, que degustava cada gole de seu vinho especial. “Não
muito.” Quando observei, ele estava sentado no meio de nós duas, mais
direcionado a ela do que a mim e seus olhos não atreviam sequer me tangenciar. Já
chega, hora de agir: “Vamos acabar logo com isso.”, eu estava nervosa. Ela, por
sua vez, muito calma. Com um sorriso de canto, ela continuava a me provocar,
desta vez subindo o tom de voz: “Com pressa, Lúcia?”. Eu sorrio para ela reciprocamente, sem muita afinidade, negando, balançando a cabeça. “Espere pela
sobremesa, é a melhor parte.”, insistiu ele, pela primeira vez em anos no que
diz respeito a nós. Eis que, de repente, ela se desfaz de toda a sua calma. Um
suspiro. Ela havia perdido a paciência.
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“O que mais agora?”, pensei,
me preparando para o seu pior. “Quem você é, afinal? Uma prostituta de luxo?”,
ela disse, se preparando para o meu pior. As palavras dela pareciam me rasgar
por dentro. “No fim das contas, você se parece muito com Lucíola de Alencar por
um lado. Justamente o sujo e promíscuo.”. Os olhos dela poderiam ler meus
pecados e sua boca poderia me castigar com um chicote. Mas ela estava certa. Eu
não era digna aos olhos de ninguém quando se tratava dele. “Uma amante qualquer
com um nobre homem”, todos pensariam àquela época. Eu não me orgulhava disso,
mas não há muito o que se fazer uma vez que não se escolhe quem se ama. Éramos
muito jovens quando tropeçamos um no outro, não tínhamos a malícia que é viver,
não sabíamos o que éramos naquele tempo. Mas, naquele momento, já sabíamos:
éramos culpados. Eu me policiei, respirei fundo, olhei deliberadamente para os
seus olhos cor-de-mel e disse: “Se você quiser ficar comigo, essa é a hora de
me deixar saber. Caso contrário, tenho mais o que fazer.”. Decidi ser breve. Descobri
que não tinha mais tempo a perder com aquela situação desconfortável e
humilhante. Ele me olhou, me mediu da boca aos cabelos que sentavam no meu
ombro, sorriu, balançou a cabeça, consentindo, e voltou seu olhar à mesa. Fiquei
confusa. Eu esperava que ele se lembrasse de que eu não sou boa em interpretar
sinais. Ela, que estava inclinada para trás, se posicionou mais para frente,
apoiando o braço sobre a mesa e nele o queixo, com um olhar confiante e
desafiador, como se eu tivesse percorrido quilômetros a toa e já soubesse a
resposta. Então, ele a encarou, meticulosamente, para se lembrar de toda
aquela feição ainda viva. O vinho que ela terminara de beber, porém, com tanta
elegância e satisfação, parecia ter sido a última gota do seu veneno. Um último
suspiro. Ela apagou.
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“O que está acontecendo?”,
perguntei, sem entender o porquê de a linda mulher ambiciosa ter se debruçado
na mesa, de repente, de forma abrupta. “Eu disse a você que a sobremesa era a
melhor parte. Nada como um bom vinho para uma mulher vitoriosa, ou quase.
Aceita? “. Fechei os olhos por dois segundos, respirei fundo – por mais que me
faltasse ar –, me levantei e, me afastando da mesa, fui aceitando, aos poucos,
o fato de ter uma mulher morta a metros de mim. Não que fosse fácil. Eu ia
desmaiar a qualquer instante. “Agora podemos ficar juntos de verdade. Eu posso
te assumir.”. Ao mesmo tempo que eu olhava aquele corpo sem vida, eu tentava
processar as palavras frias e psicopáticas que saíam da boca dele. Uma mulher
morta por minha causa. Após repetir esse pensamento diversas vezes na minha
mente, percebi que eu havia sido, de alguma forma, cúmplice de um homicídio.
Ainda mais, cúmplice de uma traição. Eu não sabia se eu sentia raiva dele por
ter sido tão impulsivo - na melhor das hipóteses, para não dizer louco – ou de
mim, por ter arriscado a minha conduta tantas vezes. Por ter escolhido trilhar
esse caminho cheio de curvas perigosas, sem placas de alerta ou algum tipo de
intervenção. Apenas estrada. Eu devia ter sentado no meio fio, no mínimo, e ter
deixado outra mulher ser a outra. Aquele não era o homem pelo qual me
apaixonei. Não era daquele jeito que eu queria ficar com ele, passando por cima
de uma vida que não precisava acabar. Tudo por causa de sua falta de coragem. Ele
a fez acreditar que ela seria a escolhida. Eu mesma havia me convencido disso.
Eu me virei em direção à porta, ainda em choque, e fui andando, lentamente, sem
foco no olhar, apenas imaginando como aquilo acabara de acontecer. A polícia
não me preocupava mais, se caso eu fosse interrogada. Nada me prendia à reflexão senão ele e sua atitude surpresa. Ao final do corredor, ele, indignado
ao meu parecer, me pergunta: “Não entendo... Você não queria que eu tirasse ela
do nosso caminho?”. Eu nunca havia dito barbaridade aquela que o fez envenená-la.
“Pois bem, agora eu estou saindo do seu. E aqui você termina, sozinho, com
nenhuma de nós.”. Tive forças para dizer essas últimas palavras, me despedindo
da casa, da cidade e dele. Se algum dia me perguntassem, eu não diria nada.
Não por amor a ele, mas por pena de mim. E, a partir daquele momento, entendi
que foi a efemeridade que nos manteve juntos e que, graças a ela, eu não tive o
desprazer de o conhecer como antes eu deseja arduamente, porque amar é mesmo
uma grande tolice.
- Mariana Sanches Moraes
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