Eu escolhi ficar



Estrelas. Fazia tempo que não as via no céu. Eu estive esperando por elas havia algum tempo. Todo dia eu pensava nelas pelo menos três vezes. Isso me levava a fazer promessas do tipo: "eu só vou continuar lendo aquele livro quando o céu estiver estrelado" ou "eu só vou comer carne no almoço quando as luzes do teto azul brilharem novamente". E assim eu me percebia vivendo apenas de promessas. Mas que tolice, ninguém pode ser livre desse jeito. Ninguém precisa depender das estrelas, muito embora elas sempre tivessem um significado especial para mim: meu pai. Ele sempre me dizia, quando ainda menino púbere, que existiam estrelas que tinham uma luz mais intensa e essas seriam as que teria que se olhar para fazer um pedido. Por isso da famosidade da estrela cadente. Porém, no caso de sua ausência, meu pai acreditava ser possível pedir às estrelas mais brilhantes. Então, me pus a crer fidedignamente em suas palavras, assim como na realização dos meus desejos. Eu podia até ter dito às estrelas sobre como a falta delas me entristecia, mas isso claramente não era possível.


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 Nem eu mesmo entendia o porquê de eu prometer algo com a condição delas aparecerem; talvez fosse algum tipo de recompensa por elas me ouvirem. Ou talvez eu fosse louco. Mas prefiro acreditar no que eu quero - costume que sempre tive, aliás. E, para mim, eu não era louco. Era melhor, mesmo assim, eu parar com promessas tolas. A não ser que elas não fossem. Eu provavelmente devia prometer fazer algo maior. Nada de banalidades. E, já que estrelas não têm vida útil, eu tinha que fazer algo por mim. Foi assim que eu decidi sair de casa. Fugir não. Fugir é uma palavra muito forte e eu não tinha do que fugir. Eu tinha uma família com pilares resistentes, ideais e crenças imutáveis e costumes de raiz. A verdadeira família tradicional e, mesmo que eu não fosse comum a isso, tínhamos uma boa convivência. No entanto, eu quis sair de casa para enfim ir ao meu encontro, pela busca incessante das respostas para as minhas perguntas. Eu tenho a consciência que, por outro lado, o que Rainer Maria Rilke escreveu uma vez faz total sentido: temos que viver as perguntas também para que, em um belo dia, possamos viver as respostas. Não fosse pelo meu contato íntimo e exaustivo com as dúvidas, eu seguiria seu conselho. Mas já bastava.



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Provavelmente as estrelas me ouviam mesmo. Elas apareceram no dia seguinte. Como eu acredito às vezes mais nas razões das coisas acontecerem do que na possibilidade de se tornarem real, para mim, partir era o meu destino. Então, eu peguei algumas roupas, uma escova de dentes, a minha economia e alguns livros, como On the Road de Jack Kerouac e outras obras da Geração Beat. Às cinco da manhã, eu coloquei a mala pesada em minhas costas e, mesmo assim, me senti leve, desprendido de qualquer julgamento ou olhar espião. Era como se eu estivesse finalmente livre. Ainda assim, mal conseguia acreditar em minha própria consciência prematura e desajustada: sair de casa sozinho e sem rumo não parecia algo bom. De qualquer forma, parecia ser apenas uma viagem e eu voltaria dentro de alguns dias. Pegando o primeiro voo de Belo Horizonte e decidido a chegar em Buenos Aires, a única coisa que pensei durante a viagem foi o que me fez chegar a esse ponto. Quando foi que as coisas fugiram do meu controle? Quando foi que eu decidi que simplesmente não dava mais? 

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Eu não sabia como responder a tudo isso. Quem dirá ter um minuto de paz comigo mesmo. Eu então comecei a me lembrar do meu primeiro beijo e no quanto ele foi desastroso, da minha primeira aula de física e no quanto eu me senti embevecido ao aprender sobre a Teoria das Cordas, do meu primeiro amor, que me dilacerou de dentro para fora, me deixando com aparência lúrida, murcha, desalentada. Costumava perguntar a mim mesmo sobre minhas escolhas nem sempre sensatas, meu jeito de caminhar que beirava as margens da discrição, minhas preferências pessoais que me distanciavam do método padronizado que se utilizavam os outros ao meu redor. Enfim, eu estava exausto de viajar apenas por meus pensamentos caóticos e incapazes de qualquer expansão ou progressão. E ninguém poderia fazer isso por mim. Eis que, depois de algumas horas conflitantes e surreais para um garoto pacato, eu finalmente sinto o solo de novo - pela primeira vez, sinto prazer em ter os pés no chão. Passei pelo aeroporto, observando as pessoas dos mais variados estilos possíveis, peguei minha pouca bagagem e segui para uma nova aventura: a busca por um lugar para ficar. 


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"Um hotel, claro", pensei comigo. E então, após ouvir muitos sotaques e muitas referências, decidi me hospedar no local mais próximo do centro - que não fosse muito caro. Chegando lá, pude perceber uma bela recepção simplória, com detalhes de azulejos aleatórios na parede e poltronas de couro marrom, deixando à vontade revistas e guias sobre uma pequena mesa de vidro. Quando abri a porta do meu novo quarto, senti uma desconfortável sensação de perda. Era como se eu estivesse sem família ou amigos para quem recorrer. Sem casa, sem lar, sem roteiro. Hesitei ao entrar, mas fui firme. Larguei meus pertences na macia cama de solteiro, tomei um banho breve e quis ficar algum tempo despido, olhando para a janela sem esperar que me olhassem de volta. Refleti sobre o quanto meus pais estariam preocupados, por mais que eu tivesse deixado um bilhete dizendo toda a verdade. Até porque eu não via  motivo algum para mentir. Fechei os olhos por três segundos, respirei fundo e vesti minha melhor roupa. Um garoto brasileiro jovem estava prestes a cair na noite argentina. 


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Aquele era o meu momento, as minhas decisões, a minha viagem, a minha vida. Era a viagem da minha vida, aliás. Eu quis sair sem rumo, sem indicações, apenas com o meu bom faro de juventude ávida por conhecimento e diversão. Antes que eu pudesse imaginar, me vi em frente a um bar que me levou para seu interior por conta da música. Era um lugar de presumidamente muito sucesso, lotado ao som de folk alternando com indie rock. Eu me senti acolhido por uma mulata que me ofereceu um drink assim que me sentei no bar. Iniciamos uma conversa pouco produtiva devido à minha falta de dominância com a língua. Mesmo assim, me pus à sua disposição e me senti contagiado com toda sua energia ao falar. Eu estava adorando tudo aquilo. A cada gole, uma risada e a cada risada, uma nova amizade. Quando eu pude me dar por consciente, estávamos a afável morena, eu e outros caras em volta, com olhares e sorrisos simpatizantes. O tempo havia se tornado mais rápido do que eu poderia calcular. Resolvi ir ao banheiro.

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Ao voltar para o bar, parei, olhei para os lados, insisti em procurar, mas não encontrei mais as pessoas com quem eu estava. Nada. Logo, me tomando como um inconsequente, me perguntei se eu havia demorado tanto assim no banheiro, ou se eu havia exagerado de maneira tão grave nas bebidas que não me lembro se a mulata e companhia haviam se despedido. Sem alguma resposta - nem mesmo em condições de obtê-las -, percebi que mais uma vez eu só tinha perguntas. Ao caminhar até o meu assento, ouço, pouco nitidamente, o meu nome. A voz, ainda que não precisa, era masculina. Olhei para os lados. Nada. De repente, um homem, tido pelos meus cálculos e mínima sobriedade como jovem de vinte e tantos anos, para em minha frente. Um homem que, sem dúvidas, me chamaria a atenção em qualquer lugar. Mesmo que num dia com ritmo apressado, sem tempo para sequer olhar as estrelas. Esse cara, que parecia eliminar quaisquer problemas que eu encontrei durante os percalços da minha vida, perguntou se eu queria sair dali. Sem recusa nem cogitação dessa hipótese, meio desnorteado, levantei da cadeira e fomos em direção à saída. Ali na frente do bar mesmo, ele tirou dos bolsos um isqueiro e um maço de cigarro, um de cada lado. Acendeu um, segurou na boca, acendeu outro, ainda na boca, e me deu o primeiro. Normalmente, eu perguntaria o nome dele, o que eu estava fazendo com ele e para onde foi a mulher de cor bonita. Mas eu estava muito mais intrigado em saber quem ele era. Brasileiro, eu sabia. Entretanto, o que ele estava fazendo em Buenos Aires? Viajando sozinho, morando de favor?

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Enquanto ele falava sobre as problemáticas com sua família, sua vida agitada na capital argentina e seu apartamento que acabara de comprar, eu reparava em como a jaqueta de couro preto abraçava seus ombros e braços gentilmente, em como seu cabelo, em um duelo com o vento fresco, oscilava indeciso de um lado pro outro. Observei suas mãos gesticulosas e precisas, me conduzindo para sua conversa, para seu ego, para seu charme. Suas sobrancelhas denunciavam um olhar crítico e sedutor; sua barba acusava ele de não cuidar muito bem delas; sua boca entregava seus líbidos mais perversos e aquela mania de passar a língua por entre os lábios definitivamente o condenava à morte. Ele era com certeza um criminoso. Desses de rua, que roubam tudo sem levar nada. De mim, ele roubou a atenção. E foi assim que eu me senti livre pela primeira vez em muito tempo. Embora eu estivesse preso às condições que me foram concedidas - um homem que transpirava exuberância e que não me deixava tirar os olhos dele por quase nada -, eu senti a liberdade de ser. E eu fui.

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Fui o garoto de nove anos que perdeu sua inocência ao olhar com desejo outro garoto. Fui o mentiroso que simulava encontros casuais com garotas até os dezessete anos. Fui o maldito, pecador, esquisito e sórdido. Fui o maior explorador de estrelas por pensamentos, o mais fiel às promessas. Fui isso tudo e mais o desejo culminante que me arrastou para o apartamento daquele homem, que me despiu de preconceitos, dilemas e culpas. Nada mais me atormentava. Eu me sentia tão leve que poderia sair do quarto pela janela do sétimo andar, sem sentir que iria cair. Sem ouvir nada mais forte que minha própria consciência bem resolvida. E eu me lembro que, naquela noite, o céu estava estrelado como nunca estivera em Belo Horizonte. Nem mesmo quando eu o ansiava intrinsecamente. Dormimos entre lençóis e acordamos debaixo deles. Fizemos café, andamos pela cidade, bebemos e fotografamos. E assim, eu saí do hotel para ficar com ele. Longe de transparecer interesse, mas eu realmente não tinha dinheiro para mais que duas noites mal dormidas num hotel simples. No decorrer das semanas, os problemas retornaram já sentindo a minha falta. 

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Eu precisava voltar para casa. Não pelos meus pais somente, mas eu sentia essa necessidade. Você sabe quando precisa voltar. Quando é preciso levar o aprendizado de uma viagem para sua vida. E aquela não era a minha vida; era a vida que eu criei para fugir da minha. Ou talvez, por mais assustador que fosse aceitar, aquela era a minha vida que eu nunca tive chance de viver. Em horas assim, eu penso em como seria bom se pudéssemos viver todas as nossas opções, não a escolha. Porque, no final de suas consequências, sempre acabamos por nos perguntar: e se? E se eu ficar? E se eu for? As coisas ainda continuarão aqui, do mesmo jeito? Mais perguntas. Más perguntas. E talvez eu só tivesse uma resposta: sair de casa. Essa foi a única promessa que me libertou. Sem ela, eu não teria mais perguntas, logo eu não teria também escolhas. Então eu fecho os olhos por três segundos, respiro fundo e coloco para tocar The Beatles. Tiro minhas roupas da mala, coloco On The Road na estante e observo as estrelas ao lado dele, porque eu escolhi ficar.

- Mariana Sanches Moraes


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