Carpe noctem
Pôs-se a dormir a menina de olhos
grandes e cabelos grossos debaixo do travesseiro que afugentava seus medos e
acionava o delírio do escuro. Aquele escuro quando se fecha os olhos - não dá
para dizer que é preto, nem todo escuro é preto - e aí algumas figuras
estranhas são projetadas pela sua mente. A menina gostava disso. Ela gostava de
ter as cobertas entrelaçadas em si dos pés à cabeça. Cobertas essas que tinham
um aroma materno, uma textura doce e um gosto macio. Tinham rabiscos de caneta
também e eram tão pequeninas que mal cobriam seus dedos frios caso ela resolvesse
se espreguiçar ou deixar de dormir encolhida. Eram três pedaços de pano que a
acompanhavam desde seus dois anos de idade. Eram três pedaços de pano que
fizeram, há certo tempo, parte de uma vida contemplada por risos e alegria.
Eram três pedaços de pano contra um inverno devastador lá fora e contra todos
os males que poderiam aniquilar seus planos de seguir em frente. Não tinha
objetivo. Talvez até tivesse, mas se tratava disto: seguir em frente. Para tudo
na vida. Foi o que ensinaram a ela durante seu percurso de 218 meses.
“Não olhe para trás, nunca”,
muitos disseram. Disseram muitas vezes pelo hábito do “vai ficar tudo bem”, mas
outras vezes disseram porque sabiam o quanto esse clichê se encaixava
perfeitamente ao seu passado. Apesar disso, eram raros os clichês que sua
história carregava. Ela desejara, claro, que, como todo mundo, suas manhãs
começassem com geleia na torrada e café quente, suas tardes durassem menos por
conta dos estudos e suas noites terminassem com um rotineiro “boa noite, durma
bem” de qualquer paquera, de qualquer irmão, de qualquer mãe. Mas de uma mãe,
principalmente. Podia ser uma mãe clichê também, que se preocupasse com o vento
brusco da madrugada envolvendo uma manta extra em sua filha. Que voltasse para
casa mais cedo do trabalho para preparar o macarrão que a filha pediu a semana
inteira. Que ouvisse os lamentos da filha após alguma decepção amorosa e lhe
dissesse: “eu avisei, não avisei?”. O que, muitos diriam, faz de toda mãe um
verdadeiro clichê, porque mãe é tudo igual. “Quem dera”, pensava ela toda vez
que escutava essa frase estúpida de tão generalista. Estúpida de tão mentirosa,
imbecil, cretina e ilusória. Nada
a irritava mais do que pensar sobre esse delicado assunto já que a rasgava por
dentro deixando o sangue transbordar por fora. Feria alma e mutilava os sonhos.
E sem sonho ninguém dorme bem. Mas também ninguém dorme bem sem um “boa noite,
durma bem” de qualquer mãe.
Quando acordara, percebeu, mais
uma vez, que nada havia mudado. Suas manhãs começaram com um pedaço de pão velho
e um resto de cachaça da festa passada, suas tardes duravam tempo demais por
conta da falta de ejaculação precoce de seus caras – não clientes – e suas
noites terminavam com uma rotineira insônia que se arrastava até às 5 da
matina. Toda vez que se dava conta de que estava amanhecendo, ocorria que
chorava muito. As lágrimas caíam em seus cabelos, já molhados de suor, como se
fossem água de riacho, escorrendo uma atrás da outra. “A vida é para poucos”,
pensava. A menina de boca pequena e nariz miúdo costurava seus dedos por entre as
cobertas desfiadas. Não gostava de ficar sozinha, mas a noite era sua única
companhia verdadeira. Seu refúgio era uma pequena suíte na parte mais
movimentada da cidade, com espaço para um colchão fino, geladeira enguiçada e roupas
jogadas pelo chão cimentado. Mais parecido com um quarto de zona num subúrbio
central. Não que o piso gelado impedisse que houvesse relações carnais ali. Na
verdade ali acontecia muita transa, trepada, sexo sujo. Tudo o que há de mais
escancarado no mundo da juventude aborrecida, humilhada e marginalizada. Tudo o
que há de mais mórbido, para ela, valia a pena. Tudo para tapar as feridas,
embora elas fossem crônicas.
Ela aprendeu, a menina frágil, a
engolir dores. Engolia as suas próprias dores e as que encontrava pelo caminho.
Era como se as colecionasse num potinho de vidro que uma hora iria explodir.
Seu corpo magro e esguio não suportava tantas lesões sem um toque disfarçado de
carinho, sem um abraço disfarçado de lar. E ela precisava de dinheiro, de
alguma forma. Não que fosse a melhor, mas era conveniente. A menina, porém, não
gostava de ver aquilo como sua profissão e nem os caras como clientes. Eram
favores extras para uma grana extra. Ela não era prostituta, nem piranha, nem
vadia. Ela era a criança abandonada pela mãe, a adolescente desprezada pelos
colegas, a menina-mulher jogada para a vida sem nenhum conselho ou manual se
instrução. Ninguém lhe mostraria as oportunidades de sair dali senão suas
próprias pernas. “Fuja”, dizia ela para si mesma. Mas a realidade do mundo lá
fora poderia decepcioná-la também. Ela não estava imune. Ela não tinha nada
precioso.
Talvez seus trocados no bolso
valessem mais do que seu coração cocainizado, alcoolizado, dilacerado. “Mas
siga em frente”. Talvez os passos em direção ao colchão espermatizado valessem
mais do que em direção à porta de saída. “Mas siga em frente”. Talvez qualquer outra
vida valesse mais que a sua, que estava morrendo. “Então vai, coloque esses
três pedaços de pano sobre esse monte de osso e pele que você chama de corpo,
coberto de cicatrizes e hematomas, enfie esse rosto de aparência lúrida por
debaixo do travesseiro-mãe e esquece a droga dos seus medos. Feche os olhos,
menina. Amanhã é um novo dia”, dizia sempre que a tristeza parecia gritar em
seus pulmões, e ainda assim não chegavam até a boca – morriam antes as palavras
de socorro. A boca abria, mas costumavam achar que era parte de seu trabalho
como vagabunda. “Agora chupa”, os caras suplicavam. Mandavam. Forçavam. E a
culpa acabava por seu dela, afinal, quem manda ser vadia? As pessoas têm a vida
que escolhem, claro. Ninguém ouvia seu silêncio que eram gritos calados.
Ninguém ouvia seu silêncio que eram gritos. Ninguém ouvia seu silêncio. Ninguém
ouvia. Ninguém. Pôs se a dormir mais uma noite, enfim.
- Mariana Sanches Moraes
Pude compartilhar todos os sentimentos incompletos e melancólicos dessa pobre menina-mulher. Toda essa vida sofrida na falta de amor e carinho, coisas que soam "clichê", mas fazem toda a diferença para quem vive sem isso.
ResponderExcluirGostei do modo como construiu a personagem, despindo-a sem pudor e julgamentos. Exibindo a realidade de forma crua, inclemente.
No fim, restou-me o sentimento de pena dessa pessoa que, assim como tantas outras, foi condenada pelas circunstâncias. Tive pena, mas também alegria por ler algo tão bem escrito e enriquecido em detalhes.
Que bom que tive paciência para garimpar e encontrar seu blog ;-)
Beijos Mariana.