A vida por um velho
A garota entrou em casa pela porta dos fundos ofegante e cabisbaixa. Respirou fundo e deu seu primeiro passo em direção às escadas que rangiam. Ainda assim, pôde ouvir uma tosse seca vinda da sala. Era de seu avô, que se acomodava na desconfortável cadeira de madeira escura, usando dois travesseiros finos para amortecer suas incontáveis espécies de dores nas costas. Ao perceber que ele estava sozinho e inquieto se ajeitando para assistir ao jornal da meia noite, a garota decidiu sentar-se no tapete mesmo, em uma tentativa de altruísmo por pena, e começou uma conversa desajeitada com o velho. Perguntou:
- Essas notícias... Elas não te entristecem?
- Como? - a atenção do senhor é voltada para a menina.
- O jornal só mostra coisas ruins. Isso não o deprime?
- Olha, minha filha, isso é uma grande besteira. O jornal não pode ser a causa de uma tristeza. Eu estou radiante, ainda que eu saiba dessa epidemia terrível que é notícia em todo o mundo. E ainda que eu saiba que existem crianças que morrem de fome e que nada muda o hábito desonesto dos corruptos, eu estou feliz.
- Como o senhor consegue?
- Pode soar egoísta, mas a verdade é que eu não deixo as coisas ruins me abalarem. Não mais. Demorei uma vida inteira para aprender que ela é uma cilada. É injusta mesmo. Não há como tudo estar em equilíbrio ao mesmo tempo. Então, eu vivo contente para reforçar o outro lado da balança. Sabe, o lado que deve ser mais pesado. O das coisas boas.
- Estou triste porque tive uma decepção amorosa. Então, o que eu faço quando a pessoa que me magoou está bem e eu não? Devo ficar do lado das coisas ruins da balança só para ajudá-la em seu desequilíbrio?
- De maneira nenhuma. A pessoa que te dilacerou o coração pode estar bem, mas é diferente de estar feliz. Estar bem significado dizer que ela não se machucou. Já estar feliz significa dizer que ela não se machucou e não machucou outra pessoa também. Não foi esse o caso. Ela deixou uma ferida aí dentro de você, não é?
- Dói tanto. Acho às vezes que não vou aguentar respirar porque aperta o peito, aqui. Eu queria entender essas coisas. Queria entender a vida. Quer dizer, eu nem sei o que eu quero dela ou o que ela quer de mim, se deixo as coisas acontecerem naturalmente ou se sigo aquele velho caminho que tudo dá certo. Se me arrisco ou se ouço meus pais. O senhor entende?
- A sua briga é com a vida, e não com o amor, minha jovem. A primeira coisa que você tem que aprender é que nunca, sob hipótese alguma , se deve ficar contra a vida. Você tem que ser
amiga dela, deixar ela te guiar achando que você que está no controle. Engane-se para entendê-la. Seja flexível quanto às suas escolhas e firme quanto às suas consequências. A vida quer de você o que você quer dela. É um jogo recíproco. Por isso que sempre se recebe aquilo que se dá. Não se intimide. Quanto à sua dor, ela irá passar. Com sorte, você terá mais dores por fora do que por dentro. A estas se aplica a exceção: nem sempre elas somem. Elas passam e se transformam em algo delicioso chamado memória. A dor que vira lembrança do passado é o alívio do presente. E as coisas boas... Ah, essas viram relíquias. Mas cuidado: elas são muito minuciosas. Atente-se aos pequenos momentos e valorize-os para que elas nunca saiam do seu coração. Você vai perceber que a vida carrega mais qualidades do que defeitos. Isso é um dom. Por isso, faça tudo o que sente vontade intensamente. Não se limite às mesmices, não se prenda aos padrões e às formalidades. A verdade é que você deve encontrar as coisas que te fazem feliz e, depois, abandona-las. Desista de tudo o que te faz feliz. Se você sentir calafrios de madrugada, sintomas de depressão e necessidade intrínseca de voltar a fazer o que te faz feliz, aí então você volta. Isso serve para tudo na vida. Volte para aquele antigo amor de infância, para aquela aula de teatro, para aquele grupo da igreja, para aquela banda de rock, para a faculdade de letras, enfim. As coisas boas da vida devem nos prender, e não fazer com que nos demos o trabalho de prendê-las em nós. Leve apenas o que for leve. E essa história de "seguir o velho caminho que tudo dá certo" é bobagem. Nenhum caminho é certo. Nenhum caminho é igual. O seu é diferente do meu e nem por isso um deles é certo e o outro errado. Ouça seus pais mas siga o seu instinto. Não vou dizer para você seguir seu coração porque isso nem sempre ele sabe para onde nos levar. No entanto, faça tudo com amor. Ame as pessoas respeitando-as. Não se preocupe tanto com o resto. O resto vem.
- Hum... E como eu faço para passar essa dor?
- Comece agradecendo por ser jovem. Agradeça por não ter dor nas costas.
- Assim o senhor não contribui para o lado das coisas boas da balança.
- Talvez eu esteja velho demos para contribuir para alguma balança. O que posso fazer é deixar algumas lições para você.
- Você está certo. Sobre tudo, é. E eu escolho o lado das coisas boas.
- Ótima escolha.
- Mariana Sanches Moraes
Linda positividade na velhice. Curiosamente, escrevi sobre o mesmo assunto hoje mesmo. Adorei a crônica! Um beijo.
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