Dicionário


Diga-me as palavras que compõe teu dicionário. Se são compridos ou curtas, se aspiram leveza ou peso, se são recitáveis em qualquer boca ou só na sua. Ou se é tudo isso simultaneamente. Ou se é tudo isso respectivamente. Ou se no seu livro de língua você usa uma palavra só, com uma sílaba só. Ou se não usa palavras, se prefere as frases dos olhares, as pontuações dos gestos e a linguagem do seu eu lírico. Mas diga-me sem demoras, porque eu quero me despir à qualquer interpretação do seu dicionário, especialmente se tiver mais de uma. E então meu imaginário flutua sobre cada letra que você compõe. Eu quero viver em suas palavras como se vive em uma casa no campo. Explorar os seus diferentes significados em cada contexto como se explora uma floresta. Eu quero ser íntima das suas palavras a ponto de me tornar uma delas.

Deixe-me fazer parte desse neologismo que te acentua, criar significâncias, deixe-me entrar pela porta da frente no seu universo literário. Deixe-me irresistir você e existir em você, calendar seus dias, desmarcar seus compromissos e me colocar como sua prioridade. Deixe-me subverter seus planos, desordenar sua mente, descabelar sua paciência, desajustar seu relógio e desalinhar suas linhas escritas desse seu dicionário que mais age do que diz. Eu, por outro lado, quero me deixar levar por todas as suas figuras de linguagem. Quero realçar o brio que te aclama, fazer o vento te acariciar o rosto e tirar seus cabelos para dançar, porque eu sei que você prefere o sopro que vem do teu lado oposto. Assim como você prefere que não tenhamos tanto em comum, ou que eu não saiba sobre a sua inspiração para criar palavras. Mas disso eu não preciso saber. Sei só que me vejo como protagonista das fantasias que a sua mente inventa, é algo em você que me deixa ficar, pegar o canto da sua cama de mansinho, tomar o café do mesmo lado da xícara que o seu – sem batom, eu prometo -, abandonar propositalmente minha escova na sua casa, tornar as suas palavras afáveis à minha voz, até que tomarei elas como minhas. Até que me tornarei parte delas.

E daqui a algum tempo, serei uma palavra no seu livro de língua, que tem significado, conjugação, sílabas tônicas, vogais, consoantes. Serei período, quando estivermos mergulhados em nossos olhares compenetrados enquanto a hora tem pressa, frase, quando tudo o que você precisa ouvir tem que ser dito em poucas palavras, e oração, quando for para acalentar seus anseios. Acompanharei exclamação quando seu semblante for sorriso, atuarei como interrogação quando a única incerteza for a de onde jantar, e, eu espero, relutantemente, não permanecer com vírgulas ou pontos finais. Estes são impiedosos, atrapalham o ritmo, desfazem sentidos, interrompem histórias. Prefiro a infinidade. Prefiro nós escritos nus, emendando as letras na mesma facilidade que emendamos nossos corpos. Apenas não me deixe ser hiato, intervalo, lacuna. Preencha-me com destreza em cada traço em que eu estiver presente, em casa conto, crônica, romance. Mas não faça de mim um significado tão óbvio. Quero ser interpretada de várias formas, mas somente  à sua maneira.

- Mariana Sanches Moraes

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