Atrás da pele
Era uma consulta. O doutor me dizia sobre uma mulher que
tinha um desejo quase que obsessivo em andar nua pela rua das flores. O
problema, segundo ela, é que era improvável que isso acontecesse, uma vez que
frequentar uma região pública completamente despida é atentado ao pudor, é
crime, é lei. O doutor, então, a disse para, de alguma forma, sobre a qual ela
teria que pensar bem até encontra-la, realizar sua aspiração. Após alguns anos,
a mulher retorna ao consultório psiquiátrico e relata que conseguiu aquilo que
tanto almejava. Em um dia de chuva rasa, nem garoa nem tempestade, ela percebeu
que podia encontrar sua solução. Vestiu uma capa de chuva transparente, colocou
um casaco por cima e um chinelo. Quando chegou à rua das flores, se desfez do
casaco, e a atravessou. Alguns olhares discretos, outros impressionados. Mas ao
fim do trajeto e no fim das contas, ela andou pela rua das flores nua. Eu sei,
eu pensei a mesma coisa: ela não estava nua, ela estava com uma capa de chuva,
mesmo que transparente. A questão, bem na verdade, é que a capa a protegia da
chuva, e não da sua nudez.
E eu, enquanto ser humano errante, no percurso para
encontrar a minha solução, andei mais tropeçando do que progredindo. Alguns
falam em intuição, dizem que você sente quando está na direção certa, no
caminho da solução. Mas eu prefiro acreditar que, tanto se fazendo de atalho
como de caminho longo, a gente acha a nossa solução, uma hora ou outra. Me
mantive atenta a cada palavra que o doutor pronunciava, com tons de quem recita
poesia. Quando a poética história dele sobre a menina da rua das flores
terminou, ele me disse que, enfim, apesar dos julgamentos alheios, somente nós
sabemos o que tem atrás da nossa pele. Somente eu sei qual sensação me causa um
arrepio de medo, de tesão, de emoção. Somente eu sei qual a carga que carrego
no peito, as razões intrínsecas de cada lágrima minha, as dores que me travam,
as palavras que me excitam, o suor da minha rotina, os pensamentos que me
consomem e os que me constroem.
E, se só eu sei o que tem atrás da minha pele, por que as
pessoas insistem em querer me descrever? Em querer te descrever? Cada um é
autor da própria história, entendi nessa sessão, e ninguém senão você deve
escrever nas suas páginas. Porque ninguém senão você entende e sente o que
acontece aí dentro, e ninguém senão você consegue encontrar sua solução. Seja
responsável por você, e assuma a responsabilidade de tudo que ocorre na sua
vida. O Pequeno Príncipe já dizia sobre isso. Comecei a pensar comigo mesma,
enquanto o doutor falava, que eu não poderia mais agir como vítima das minhas
consequências. Se eu estou onde estou, a culpa é minha. E ainda bem. Saí da
consulta como quem sai de uma prisão para um campo recheado de flores, coberto
pelo sol e ar fresco. Sensação de autonomia e liberdade interna. Deve ter sido
exatamente o que a menina da rua das flores sentiu, e deve ser atribuída a isso
a minha metáfora. Problemas todo mundo têm, mas e quanto às soluções? O quanto
estamos realmente empenhados em encontra-las?
- Mariana Sanches Moraes
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